sábado, 21 de dezembro de 2013

Véspera de Natal - Um conto de Bellatoris


    Havia algo estranho naquele vinte e quatro de dezembro. Ao menos assim Carmen sentia ao descer do vazio ônibus em frente à torre branca que riscava os céus de Campo Grande como um monólito imponente. O edifício Del Áquila estendia seus trinta andares em direção aos céus, brilhando e oprimindo aqueles curiosos olhos cansados de véspera. Cansados do que veriam, do que deixariam de ver e, principalmente, do que imaginariam.

    Pois as festas dos Veigas eram repleta de segredos e, apesar daquela ser a primeira vez que Carmen pisaria na majestosa cobertura de vidro, rumores já alcançaram seus ouvidos. Boatos sobre figurões da alta sociedade bêbados, escândalos deflagrados no correr da noite e, principalmente, sobre a estranha menina.

    Carmen ouvira de um vizinho que a pequena Selene, onze anos, era uma menina quieta e reservada. “Não entre na cobertura sem se anunciar”, ela lembrou, então ergueu seus olhos para a cúpula de vidro no topo do prédio e imaginou o que havia de tão importante naquela estrutura de ferro nobre e vidro temperado que refletia a luz do sol como um prisma.

E a luz machucava seus olhos.

-/-

    O elevador de serviço tocava uma canção natalina, daquelas aleatórias, mas que, por se repetirem por anos a finco, tornavam-se tão cansativas quanto o trabalho que viria a seguir para a jovem servente. “Ao menos a comida está liberada”. Então as portas se abriram e seu trabalho se apresentou na forma de uma cozinha em caos, com uma cozinheira visivelmente irritada e meia-dúzia de garçons correndo em desespero.

O patrão exigia perfeição, e perfeição teria.

-/-

19h

    Os uniformes foram entregues da lavanderia, atrasados, porém limpos e confortáveis. Carmen abotoou as últimas contas e ajeitou o cabelo em um coque. Olhou-se no espelho pela última vez naquele dia e só se lembrou de ver o cansaço. Suspirou.

19h15

    Engoliu algum pedaço de peru, empurrando com o suco azedo que lhe desceu pela garganta como ácido. A careta foi inevitável. Então se dirigiu à sala para ser, finalmente, apresentada à família anfitriã.

      Enfileirados em frente à alva escada de mármore em caracol que cortava o centro daquele amplo apartamento, a equipe esperou pacientemente. Mãos cruzadas nas costas e impaciência disfarçada na complacência de suas faces inexpressivas.

19h30

    A porta dupla de madeira talhada se abriu, revelando os Veigas escoltados por um segurança truculento. Carmen observou cada um deles com discreta curiosidade. Havia o pai, Jonas Veigas, homem bonito, de traços firmes e delicadeza na voz, um trato que ele aprendera com os anos de diplomacia nos consulados ao redor do mundo. Atrás dele, o peralta caçula correu direto à mesa de doces montada no canto leste. Jonas retrucou brevemente e Rian soltou um bufar aborrecido.

    Carmen reprimiu o sorriso, então mirou à frente novamente e viu, surgindo das costas do pai, a linda primogênita dos Veigas, Selene. A servente apertou os olhos para observar aquela menina com atenção, mas à primeira vista não conseguiu encontrar nada que delatasse sua fama. Ao contrário, era uma menina tímida usando um lindo vestido branco bordado e sandália grega. Talvez o único ponto destoante nela fosse a fina trança que lhe caía pela têmpora esquerda até a altura de seu colo e tinha na ponta uma pena alva e bela.

Selene era, aos olhos de Carmen naquele momento, uma Hippie rica.

20h

   Os convidados começavam a lotar a sala, e o trabalho de Carmen aumentava constantemente. Servir a bebida, recolher as taças deixadas a esmo, secar o vinho derramado no piso imaculado. Oferecer canapés, cuidar Rian e sua tentativa incessante de roubar doces, recepcionar os recém-chegados, beber uma taça de tinto escondida atrás de uma coluna, respirar e existir.

21h

   Já havia mais de cinquenta pessoas naquele apartamento. Algumas sortudas conseguiram uma confortável poltrona ou um canto nos diversos sofás espalhados por ali, mas a maioria ficou em pé, segurando suas taças com determinação. E elas nunca poderiam estar vazias.

22h

   Carmen sentou-se em um banco na cozinha, sendo repreendida com um olhar severo da cozinheira que, ali, decorava a última peça de um presunto que custara o salário de três meses.

    Foi quando um colega se dirigiu a ela com rispidez e entregou um cálice do suco amargo em uma pequena bandeja. “Entregue à menina Selene” ele disse. Carmen sorriu sem vontade e se pôs de pé, as articulações começando a doer e o cansaço aumentando cada vez mais. Mas a primogênita dos Veigas estava com sede e era preciso salvar a pobre alma.

22h15

    Carmen desviava dos convidados com movimentos suaves, porém certeiros. O cálice estava muito cheio e deixou escorrer uma gota ou duas. Quinze minutos haviam se passado e nenhum sinal da menina. O apartamento era grande e estava cheio, mas não tanto para se perder alguém, principalmente quando este alguém é a anfitriã.

22h30

    Um fio de suor despontou em suas costas ao perceber que ela já havia dado incontáveis voltas no apartamento e não encontrado sequer a sombra da garota. Seu pai conversava com políticos em um canto, Rian finalmente alcançara os doces em outro, mas Selene parecia ter sumido na névoa.
    
    Então, quando as esperanças em encontrá-la se dissolveram por completo e o suco já se acumulava fora do cálice, Carmen ouviu o grito raivoso vindo de cima.

NÃO!”

As conversas se interromperam.

“VOCÊS NÃO PODEM FICAR AQUI!”

Os olhos se dirigiram à escada de mármore.

“SAIAM DAQUI! SAIAM AGORA!”

Jonas Veigas entregou sua bebida para um amigo e se aproximou da escada.

“EU MANDEI SAIR, IMUNDOS!”

    Tão logo a última frase foi proferida, um casal começou a descer pelos degraus. Passos tentando ser discretos, mas sendo analisados por cada par de olhos ali presentes. O homem ajeitava sua gravata, a mulher, a alça de seu vestido. Ambos fuzilaram Jonas com o olhar e saíram pela porta principal. No alto da escada, Selene cruzava seus braços, recebendo nada além de um discreto balançar de cabeça por parte do envergonhado pai.

A festa seguiu seu curso, mas Selene não desceu.

23h

     Uma hora para a ceia. A cozinha estava intransitável. A prataria recebia os últimos polimentos, a porcelana era empilhada em grandes torres e uma taça se estilhaçou em meio à conversa dos funcionários. O tema não poderia ser outro além do vexame que o casal de empresários passou ao tentar um canto de privacidade na impenetrável cobertura de Selene.

     Ninguém entrava em seu refúgio, e os boatos eram, de fato, verdade.

23h30

    Carmen recolhia guardanapos esquecidos em cantos inimagináveis quando seus ouvidos foram agraciados pela música ambiente. Violinos tocados à perfeição. Ela nunca fora grande admiradora da música clássica, mas a cadência daquelas cordas atingiam seus sentidos como um carinho recebido de seu namorado. E ela queria estar com ele naquele momento.

00h

   Abraços e felicitações não tão sinceros quanto à fome, então a fila se formou ao redor das duas mesas estrategicamente preparadas em cantos opostos da sala. Mesas fartas de comida complicada o bastante para se comer de pé, e muitos comeram.

E as cordas do violino continuavam a vibrar. Carmen se sentiu feliz.

00h30

    Rian Veigas tomava conta da mesa de doces, trazendo risos às faces de todos aqueles que ali esperavam para servir um pedaço de torta, ou um macarroon, ou um daqueles outros doces franceses que eram muito mais apetitosos aos olhos que ao paladar.

Mas nada da menina Selene. Apenas o concerto de violinos que fez Carmen dançar discretamente, olhos fechados e sorriso sincero.

1h

    Os convidados começaram a partir, mas a louça ainda havia de ser lavada. E foi na pia, disputando espaço com pratarias e cristais, que Carmen se viu conversando com a cozinheira de face severa cuja voz era, por vezes, ocultada pela alta música em seus ouvidos.

- Que festa, não? – Sorriu enquanto areava a bandeja.

- Mais uma que vai gerar falatório. – A cozinheira bufou. – O Senhor Jonas vai ter problemas para abafar o vexame da menina.

- Vai sim. – Riu, balançando a cabeça. – Mas foi uma festa bonita! Tudo estava perfeito, principalmente os violinos.

- Violinos? – A cozinheira franziu as sobrancelhas.

- Sim! Você não está ouvindo?  Ainda estão tocando!

- Não tem violino algum. Nem violino, nem violão, nem música alguma, inclusive. Ordens do próprio senhor Jonas.

- Mas eu estou ouvindo!

- Você deve estar louca!

- Não pode ser. – Carmen deixou a bandeja na pia e limpou as mãos em um pano de prato próximo.

- Pois vá lá procurar, te dou meu pagamento de hoje se você achar algo!

      Assim Carmen saiu determinada, olhos fixos à sua volta e ouvidos atentos ao mais discreto dos sons. A melodia de cordas reverberava em seus ouvidos com força. Como a cozinheira não ouvia? Ela passou pela cozinha, desviou dos funcionários, chegou à sala, viu algumas personalidades bêbadas, outras dormindo nos sofás, então percebeu que o som vinha do andar acima.
Suas mãos se apoiaram no corrimão com firmeza. Ela olhou para os lados e se certificou que ninguém a observava, então se pôs a subir, degrau por degrau. E a cada passo que seus pés proferiram em direção à cobertura, o som das cordas se intensificavam. Carmen se esgueirou lentamente pelo mármore, então olhou para baixo e viu algo que fez suas sobrancelhas arquearem.

      Havia uma pena repousando no mármore, outra no corrimão e uma terceira despencando levemente no ar. O violino foi tocado com vigor, e entre pizzicatos, glossandos e vibratos, Carmen alcançou à cobertura, sendo surpreendida pela visão que lhe fez faltar o ar.

    Pois Selene Veigas dançava em meio a uma chuva de penas que despencava do teto enquanto um rapaz esguio e possuidor de uma enorme trança tocava violino. Carmen levou a mão à boca para abafar o espanto, mas foi inútil, pois o rapaz percebeu sua presença e encarou dentro de sua alma com seu par de olhos azuis, olhos antigos, olhos eternos.


Então uma forte luz explodiu e os olhos de Carmen nada mais viram.


E já não havia mais música, já não havia mais festa, já não havia mais natal.



1h30


      Carmen esperou seu transporte chegar no desértico ponto de ônibus. Os dedos batiam inquietos no banco, a respiração estava afobada, os olhos desviavam instintivamente do edifício, principalmente, da cobertura. Ela não se lembrava do que acontecera aquela noite, na verdade, continuou a não se lembrar por anos a fio.

      Por uma vez ou duas ela forçou sua mente a regressar àquela véspera de natal, mas só conseguiu se lembrar de dois ecos distantes e fracos que mais se assemelhavam a um estranho sonho do que à realidade de uma véspera de natal.


Lembrou-se da melodia perfeita...
...e do par de olhos eternos.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Book Trailer 2013

Senhoras e senhores, meninos e meninas, cachorros, papagaios e peixes-beta no copo de requeijão!

É com imensa satisfação que apresento a vocês o mais novo Book Trailer do nosso querido livro!
Peguem a pipoca!



Bellatoris será publicado em 2014 pela editora Dreams House! É o nosso sonho se realizando!!!

Sobre Simbologia

Postei esses dias no meu Twitter:


Ainda que, para mim, esses 140 caracteres falem por si, eu vou alongar essa discussão com algo que prendeu tanta a minha atenção nesses últimos tempos que eu resolvi inserir em pequenas passagens de Bellatoris. Estou falando do simbolismo na cultura pop.

Ora, não é preciso vestir o avental para encontrar inúmeras referências simbólicas, desde as mais claras até as "subliminares" (coloco entre aspas pois, se realmente fossem subliminares, ninguém as identificaria) a cada clipe exibido na MTV, em filmes, livros e até na moda. Obviamente, isso gera uma discussão que vara dois extremos: o "ah, que bobagem" e o "meu Deus isso é sinal do apocalipse".
Eu, macaco velho que sou, me permito ficar no meio-termo, e se me permitem, explico brevemente o porquê:

Como eu disse no Tweet: "Simbolismo" não tem esse nome por coincidência. Um triângulo, por exemplo, pode significar muitas coisas, dependendo do contexto. Assim, pode simbolizar Deus, o fogo, a santíssima trindade, os ideais da revolução francesa, um memorial aos homossexuais vítimas do nazismo ou apenas uma forma geométrica de três pontas que aprendemos a desenhar no jardim de infância.
Ao mesmo tempo, entendo suficientemente sobre psicologia, inconsciente coletivo e mercado financeiro para saber que uma indústria tão poderosa como a cultural (e seu faturamento bilionário) não lançaria mão de usar de alguns artifícios perversos para assegurar a continuidade de seu império. O mundo, infelizmente, não é o País das Maravilhas (que, aliás, é alvo de teorias da conspiração também. Assim como o rótulo de Xampu).

Então é isso, antes de enxergar chifre em cabeça de cavalo (exceção: unicórnios), é bom se dar o benefício da dúvida!


Ps. Em Bellatoris, o triângulo simboliza a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.