Havia algo estranho naquele vinte e quatro de dezembro. Ao
menos assim Carmen sentia ao descer do vazio ônibus em frente à torre branca
que riscava os céus de Campo Grande como um monólito imponente. O edifício Del
Áquila estendia seus trinta andares em direção aos céus, brilhando e oprimindo aqueles
curiosos olhos cansados de véspera. Cansados do que veriam, do que deixariam de
ver e, principalmente, do que imaginariam.
Pois as festas dos Veigas eram repleta de segredos e, apesar
daquela ser a primeira vez que Carmen pisaria na majestosa cobertura de vidro,
rumores já alcançaram seus ouvidos. Boatos sobre figurões da alta sociedade
bêbados, escândalos deflagrados no correr da noite e, principalmente, sobre a
estranha menina.
Carmen ouvira de um vizinho que a pequena Selene, onze anos,
era uma menina quieta e reservada. “Não entre na cobertura sem se anunciar”,
ela lembrou, então ergueu seus olhos para a cúpula de vidro no topo do prédio e
imaginou o que havia de tão importante naquela estrutura de ferro nobre e vidro
temperado que refletia a luz do sol como um prisma.
E a luz machucava seus olhos.
-/-
O elevador de serviço tocava uma canção natalina, daquelas
aleatórias, mas que, por se repetirem por anos a finco, tornavam-se tão cansativas
quanto o trabalho que viria a seguir para a jovem servente. “Ao menos a comida
está liberada”. Então as portas se abriram e seu trabalho se apresentou na
forma de uma cozinha em caos, com uma cozinheira visivelmente irritada e
meia-dúzia de garçons correndo em desespero.
O patrão exigia perfeição, e perfeição teria.
-/-
19h
Os uniformes foram entregues da lavanderia, atrasados, porém
limpos e confortáveis. Carmen abotoou as últimas contas e ajeitou o cabelo em
um coque. Olhou-se no espelho pela última vez naquele dia e só se lembrou de
ver o cansaço. Suspirou.
19h15
Engoliu algum pedaço de peru, empurrando com o suco azedo que
lhe desceu pela garganta como ácido. A careta foi inevitável. Então se dirigiu
à sala para ser, finalmente, apresentada à família anfitriã.
Enfileirados em frente à alva escada de mármore em caracol
que cortava o centro daquele amplo apartamento, a equipe esperou pacientemente.
Mãos cruzadas nas costas e impaciência disfarçada na complacência de suas faces
inexpressivas.
19h30
A porta dupla de madeira talhada se abriu, revelando os Veigas
escoltados por um segurança truculento. Carmen observou cada um deles com
discreta curiosidade. Havia o pai, Jonas Veigas, homem bonito, de traços firmes
e delicadeza na voz, um trato que ele aprendera com os anos de diplomacia nos
consulados ao redor do mundo. Atrás dele, o peralta caçula correu direto à mesa
de doces montada no canto leste. Jonas retrucou brevemente e Rian soltou um
bufar aborrecido.
Carmen reprimiu o sorriso, então mirou à frente novamente e
viu, surgindo das costas do pai, a linda primogênita dos Veigas, Selene. A
servente apertou os olhos para observar aquela menina com atenção, mas à
primeira vista não conseguiu encontrar nada que delatasse sua fama. Ao contrário,
era uma menina tímida usando um lindo vestido branco bordado e sandália grega.
Talvez o único ponto destoante nela fosse a fina trança que lhe caía pela
têmpora esquerda até a altura de seu colo e tinha na ponta uma pena alva e
bela.
Selene era, aos olhos de Carmen naquele momento, uma Hippie
rica.
20h
Os convidados começavam a lotar a sala, e o trabalho de
Carmen aumentava constantemente. Servir a bebida, recolher as taças deixadas a
esmo, secar o vinho derramado no piso imaculado. Oferecer canapés, cuidar Rian
e sua tentativa incessante de roubar doces, recepcionar os recém-chegados,
beber uma taça de tinto escondida atrás de uma coluna, respirar e existir.
21h
Já havia mais de cinquenta pessoas naquele apartamento.
Algumas sortudas conseguiram uma confortável poltrona ou um canto nos diversos
sofás espalhados por ali, mas a maioria ficou em pé, segurando suas taças com
determinação. E elas nunca poderiam estar vazias.
22h
Carmen sentou-se em um banco na cozinha, sendo repreendida
com um olhar severo da cozinheira que, ali, decorava a última peça de um
presunto que custara o salário de três meses.
Foi quando um colega se dirigiu a ela com rispidez e
entregou um cálice do suco amargo em uma pequena bandeja. “Entregue à menina
Selene” ele disse. Carmen sorriu sem vontade e se pôs de pé, as articulações
começando a doer e o cansaço aumentando cada vez mais. Mas a primogênita dos Veigas estava com sede e era preciso
salvar a pobre alma.
22h15
Carmen desviava dos convidados com movimentos suaves, porém
certeiros. O cálice estava muito cheio e deixou escorrer uma gota ou duas.
Quinze minutos haviam se passado e nenhum sinal da menina. O apartamento era
grande e estava cheio, mas não tanto para se perder alguém, principalmente
quando este alguém é a anfitriã.
22h30
Um fio de suor despontou em suas costas ao perceber que ela
já havia dado incontáveis voltas no apartamento e não encontrado sequer a
sombra da garota. Seu pai conversava com políticos em um canto, Rian finalmente
alcançara os doces em outro, mas Selene parecia ter sumido na névoa.
Então, quando as esperanças em encontrá-la se dissolveram
por completo e o suco já se acumulava fora do cálice, Carmen ouviu o grito
raivoso vindo de cima.
“NÃO!”
As conversas se interromperam.
“VOCÊS NÃO PODEM FICAR AQUI!”
Os olhos se dirigiram à escada de mármore.
“SAIAM DAQUI! SAIAM AGORA!”
Jonas Veigas entregou sua bebida para um amigo e se
aproximou da escada.
“EU MANDEI SAIR, IMUNDOS!”
Tão logo a última frase foi proferida, um casal começou a
descer pelos degraus. Passos tentando ser discretos, mas sendo analisados por
cada par de olhos ali presentes. O homem ajeitava sua gravata, a mulher, a alça
de seu vestido. Ambos fuzilaram Jonas com o olhar e saíram pela porta
principal. No alto da escada, Selene cruzava seus braços, recebendo
nada além de um discreto balançar de cabeça por parte do envergonhado pai.
A festa seguiu seu curso, mas Selene não desceu.
23h
Uma hora para a ceia. A cozinha estava intransitável. A
prataria recebia os últimos polimentos, a porcelana era empilhada em grandes
torres e uma taça se estilhaçou em meio à conversa dos funcionários. O tema não
poderia ser outro além do vexame que o casal de empresários passou ao tentar um
canto de privacidade na impenetrável cobertura de Selene.
Ninguém entrava em seu refúgio, e os boatos eram, de fato,
verdade.
23h30
Carmen recolhia guardanapos esquecidos em cantos
inimagináveis quando seus ouvidos foram agraciados pela música ambiente.
Violinos tocados à perfeição. Ela nunca fora grande admiradora da música
clássica, mas a cadência daquelas cordas atingiam seus sentidos como um carinho
recebido de seu namorado. E ela queria estar com ele naquele momento.
00h
Abraços e felicitações não tão sinceros quanto à fome, então
a fila se formou ao redor das duas mesas estrategicamente preparadas em cantos
opostos da sala. Mesas fartas de comida complicada o bastante para se comer de
pé, e muitos comeram.
E as cordas do violino continuavam a vibrar. Carmen se
sentiu feliz.
00h30
Rian Veigas tomava conta da mesa de doces, trazendo risos às
faces de todos aqueles que ali esperavam para servir um pedaço de torta, ou um
macarroon, ou um daqueles outros doces franceses que eram muito mais apetitosos aos
olhos que ao paladar.
Mas nada da menina Selene. Apenas o concerto de violinos que
fez Carmen dançar discretamente, olhos fechados e sorriso sincero.
1h
Os convidados começaram a partir, mas a louça ainda havia de
ser lavada. E foi na pia, disputando espaço com pratarias e cristais, que
Carmen se viu conversando com a cozinheira de face severa cuja voz era, por
vezes, ocultada pela alta música em seus ouvidos.
- Que festa, não? – Sorriu enquanto areava a bandeja.
- Mais uma que vai gerar falatório. – A cozinheira bufou. –
O Senhor Jonas vai ter problemas para abafar o vexame da menina.
- Vai sim. – Riu, balançando a cabeça. – Mas foi uma festa
bonita! Tudo estava perfeito, principalmente os violinos.
- Violinos? – A cozinheira franziu as sobrancelhas.
- Sim! Você não está ouvindo? Ainda estão tocando!
- Não tem violino algum. Nem violino, nem violão, nem música
alguma, inclusive. Ordens do próprio senhor Jonas.
- Mas eu estou ouvindo!
- Você deve estar louca!
- Não pode ser. – Carmen deixou a bandeja na pia e limpou as
mãos em um pano de prato próximo.
- Pois vá lá procurar, te dou meu pagamento de hoje se você
achar algo!
Assim Carmen saiu determinada, olhos fixos à sua volta e
ouvidos atentos ao mais discreto dos sons. A melodia de cordas reverberava em
seus ouvidos com força. Como a cozinheira não ouvia? Ela passou pela cozinha,
desviou dos funcionários, chegou à sala, viu algumas personalidades bêbadas, outras
dormindo nos sofás, então percebeu que o som vinha do andar acima.
Suas mãos se apoiaram no corrimão com firmeza. Ela olhou
para os lados e se certificou que ninguém a observava, então se pôs a subir,
degrau por degrau. E a cada passo que seus pés proferiram em direção à
cobertura, o som das cordas se intensificavam. Carmen se esgueirou lentamente
pelo mármore, então olhou para baixo e viu algo que fez suas sobrancelhas
arquearem.
Havia uma pena repousando no mármore, outra no corrimão e
uma terceira despencando levemente no ar. O violino foi tocado com vigor, e
entre pizzicatos, glossandos e vibratos, Carmen alcançou à cobertura, sendo
surpreendida pela visão que lhe fez faltar o ar.
Pois Selene Veigas dançava em meio a uma chuva de penas que
despencava do teto enquanto um rapaz esguio e possuidor de uma enorme trança
tocava violino. Carmen levou a mão à boca para abafar o espanto, mas foi
inútil, pois o rapaz percebeu sua presença e encarou dentro de sua alma com seu
par de olhos azuis, olhos antigos, olhos eternos.
Então uma forte luz explodiu e os olhos de Carmen nada mais
viram.
E já não havia mais música, já não havia mais festa, já não
havia mais natal.
1h30
Carmen esperou seu transporte chegar no desértico ponto de
ônibus. Os dedos batiam inquietos no banco, a respiração estava afobada, os
olhos desviavam instintivamente do edifício, principalmente, da cobertura. Ela
não se lembrava do que acontecera aquela noite, na verdade, continuou a não se
lembrar por anos a fio.
Por uma vez ou duas ela forçou sua mente a regressar àquela
véspera de natal, mas só conseguiu se lembrar de dois ecos distantes e fracos
que mais se assemelhavam a um estranho sonho do que à realidade de uma véspera
de natal.
Lembrou-se da melodia perfeita...
...e do par de olhos eternos.